sexta-feira, 17 de junho de 2011



Revolta das urnas

Derrotas de governos se devem à falta de distinções entre direita e esquerda

É como um dominó em queda desenfreada. Desde fevereiro, seis governos na Europa Ocidental caíram de joelhos, um após outro, diante da fúria irresistível das urnas, numa manifestação de desgosto generalizado do eleitor raras vezes vista na História moderna do Velho Continente. À esquerda e à direita, ninguém é poupado. O governo de plantão, seja qual for seu viés ideológico, vem sendo irremediavelmente castigado por um sentimento de desilusão embalado principalmente, mas não exclusivamente, pelos efeitos da crise econômica que desde 2008 engole empregos, afunda padrões de vida e escurece esperanças.

Dois primeiros-ministros, o irlandês Brian Cowen e o português José Sócrates, perderam seus empregos. Outros quatro governantes, a alemã Angela Merkel, o francês Nicolas Sarkozy, o italiano Silvio Berlusconi e o espanhol José Luis Zapatero, viram acender a luz amarela, ganhando uma sobrevida por enfrentarem eleições regionais.

Tal recado das urnas levanta uma questão importante: a ideologia deixou de importar para o eleitor europeu, mais preocupado com resultados pragmáticos apresentados por seus governantes?

Filósofos e cientistas políticos ouvidos em quatro países são unânimes em apontar a decepção do eleitor com seus representantes, em muitos casos, com o próprio sistema. E concordam também que as pessoas veem cada vez menos diferenças entre as plataformas das chamadas direita e esquerda tradicionais.

- O que está acontecendo é o que eu chamaria de "fetichismo da política": não são os políticos que estão a serviço do povo, e sim o povo é que está a serviço dos políticos. Isso gera uma reação crítica, que se manifesta com o eleitor castigando o governo da vez e com manifestações como a dos Indignados na Porta do Sol, diagnostica o filósofo espanhol Javier Sádaba.

Autor de mais de 20 livros e catedrático de Ética na Universidade Autônoma de Madri, Sádaba foi ver de perto o protesto do dia 15 de maio em Madri, gênese do movimento 15-M e destaca como os manifestantes atacavam tanto a direita como a esquerda, em cartazes com os dizeres "PSOE e PP são a mesma porcaria" (referência aos partidos socialista e conservador) e "Não nos representam".

- Isso sintetiza a postura dos cidadãos, completa.

Avaliação pelo desempenho

Do outro lado da fronteira ibérica, o filósofo português José Gil indica o que considera a ausência de ideologia no atual debate político europeu. Para ele, a esquerda não se renovou após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a direita, por sua vez, nunca precisou de ideologia, aferrada a valores como "pátria, terra e tradição". Segundo Gil, apontado pela "Nouvel Observateur" um dos 25 maiores pensadores da atualidade, o socialismo foi se aproximando cada vez mais das necessidades pragmáticas do capitalismo global, enquanto os valores da direita também entraram em transformação.

- O resultado é uma aproximação entre direita e esquerda de tal maneira que já não se sabe quem é direita e quem é esquerda, pontifica ele.

O francês Philippe Moreau Defarges, do Instituto Francês de Relações Internacionais, assina embaixo.

- As duas correntes, na sua versão moderada, propõem quase as mesmas soluções, observa.

Mas Defarges vê a esquerda, por suas raízes ligadas às reivindicações e utopias sociais, pagando um preço maior pelo desencanto do eleitor europeu com a política.

- Esta decepção tem sido particularmente ressentida na esquerda, porque ela encarna um projeto social e econômico generoso. A crise quebrou este projeto, afirma.

Exemplo disso são Portugal e Grécia, onde governos socialistas foram obrigados a adotar receitas amargas de austeridade mais identificadas com a direita para tentar reerguer os dois países de uma crise profunda. Em Portugal, o premier José Sócrates acaba de ser escoltado à porta de saída pelas urnas, e na Grécia, Georges Papandreou tenta se equilibrar diante de manifestações que vêm reunindo sistematicamente dezenas de milhares de pessoas em protestos no centro de Atenas.

Oriundo de um país de grande tradição anarquista e que atravessou uma destrutiva guerra civil opondo socialistas e conservadores na primeira metade do século XX, o espanhol Sádaba concorda que a esquerda está pagando um preço maior nas urnas atualmente. Para ele, a ideologia de direita clássica se mantém viva com adaptações por sua "grande capacidade darwiniana" e o objetivo simples de "controlar o poder e conservá-lo". A grande crise, indica, estaria na esquerda emancipatória, "a que vai além dos partidos políticos, quer realmente transformar o sistema e fazer uma sociedade verdadeiramente justa".

- A esquerda verdadeira não foi capaz de formular uma teoria econômica alternativa. Quando teve um mínimo de chance, se corrompeu e jogou o mesmo jogo dos vencedores: o capital, avalia o filósofo.

Temor da ascensão da extrema-direita

Nesse quadro de convergência ideológica, as diferenças marcantes de décadas passadas teriam se tornado mais tênues, e a ausência de maior distinção acaba levando os eleitores a avaliar os partidos muito mais por seu desempenho no poder do que por suas posições históricas. Uma postura essencialmente pragmática, apontam alguns.

- Os eleitores trocam partidos por pontos de vista que apreciam ou não, independentemente da plataforma apresentada. Também cresce a importância da figura do líder partidário, que não tinha tanta preponderância em sistemas parlamentaristas no passado, diz Justin Greaves, cientista político da Universidade de Warwick, na Inglaterra.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Mais 600 milhões de famintos

Impactos das mudanças climáticas devem aumentar o problema da fome no mundo nas próximas décadas.

Nas próximas décadas, o mundo poderá ter 600 milhões de pessoas a mais passando fome, em função, principalmente, das mudanças climáticas. O aumento da população, que deve passar dos atuais 7 para 9 bilhões até 2050, e a perda de produtividade na agricultura, em função das alterações do clima, poderão ser os grandes vilões da elevação do preço dos alimentos. O quadro preocupante foi apresentado no início deste ano pela organização internacional Oxfam. No estudo “Quem vai alimentar o mundo”, os pesquisadores revelam que deve haver alta nos preços e restrições para populações mais pobres. A entidade estima que, em 40 anos, a demanda pela produção de comida terá um crescimento de 70%.

O estudo é um alerta para que os países comecem já a alterar este quadro e a investir em uma agricultura sustentável que não traga mais prejuízos ao meio ambiente. Mudanças climáticas já começam a afetar algumas regiões do globo – a desertificação da África Subsaariana e de partes da China é um exemplo. No Brasil, fenômeno semelhante ocorre na região Nordeste e também em áreas de pastagem do gado. Segundo outro documento da Oxfam, a demanda por água aumentará em 30% em 20 anos. Estas alterações poderão fazer com que o preço dos alimentos dobre e que os pobres gastem até 90% dos recursos apenas com essa necessidade.

Distribuição

Hoje há quase 1 bilhão de pessoas passando fome no mundo, metade na Ásia. Mas, proporcionalmente, a África abriga maior parcela de famintos – há países com 69% da população desnutrida. Há relativo consenso entre analistas de que a insegurança alimentar hoje ocorre em função de decisões políticas e econômicas, já que o mundo é capaz de alimentar todo o globo. O problema está na distribuição e não na produção. A grande questão é que, se esta tendência obscura se confirmar, os alimento vão ficar proibitivamente mais caros, fazendo com que a falta de renda para acessar a comida fique mais dramática. Além disso, cerca de um terço do alimento produzido é desperdiçado. É provável que populações mais carentes não consigam consumir legumes, verduras e frutas.

Segundo uma das autoras do estudo da Oxfam Gine Zwart, para os consumidores pobres, que gastam até 80% de sua renda com alimentação, a alta nos preços reduz o consumo de comida. Além disso, causa a redução de gastos em outras necessidades básicas, como educação e saúde, ou venda de ativos, tais como gado ou terra. “Muitas vezes, as mulheres sofrem mais porque priorizam o consumo dos homens e são responsáveis pela compra de alimento para suas famílias. Então, sim, mais gente vai sofrer”, diz.

Fast food

Nutricionista e professora da Universidade Federal do Paraná, Islândia Bezerra argumenta que, muitas vezes, decisões econômicas afetam o valor dos alimentos. No México, boa parte da produção de milho passou a ser destinada ao mercado norte-americano de biocombustíveis e encareceu o grão em até 60% para o consumidor mexicano. A docente lembra que em países como os Estados Unidos é mais fácil para a população pobre comer fast food do que produtos in natura, reduzindo a qualidade. “Josué de Castro,autor do clássico livro Geografia da Fome, dizia que a fome é um problema histórico, causado pelos homens e para os homens. Infelizmente há um mercado negro que lucra com isso”, afirma Islândia.

Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Meio Ambiente da Unicamp, Ademar Romeiro afirma que as práticas modernas de agricultura não são sustentáveis. No futuro, isso pode resultar em avanço da produção nos biomas da Ama­­­zônia e Cerrado. Atualmente, 90 milhões de hectares no país são usados para pastagem extensiva, área que poderia gerar 300 milhões de toneladas de grãos. “A produção de 1 quilo de proteína animal exige uma área 10 vezes maior que a produção de proteína vegetal.”

Romeiro lembra que a fome ocorre principalmente pela falta de renda para comprar alimentos e não pela escassez. Ele cita estudos do ganhador do Prêmio Nobel de economia de 1998, Amartya Sem, que pesquisou grandes períodos de fome no mundo e constatou que a falta de comida não era o problema.

Renato Maluf, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e um dos maiores estudiosos da fome no Brasil, argumenta que o aumento populacional não pode ser considerado um dos fatores geracionais da insegurança alimentar. “Esta tese já foi refutada no século passado. As causas estão na pobreza e na desigualdade social”, diz.

"A fome é um problema do poder e de vontade política."

A avaliação é de Gine Zwart, autora do estudo “Quem vai alimentar o mundo”, da Oxfam. Segundo ela, para garantir alimentos para o 1 bilhão de pessoas que passam fome no mundo, é preciso investir maciçamente nos sistemas de produção utilizados por milhões de pequenos agricultores.

"Isso vai garantir a segurança alimentar para aqueles que sofrem e contribuir amplamente para a redução da pobreza."

"Em particular, os governos dos países em desenvolvimento devem proporcionar às mulheres produtoras igualdade de acesso e recursos, promovendo o desenvolvimento sustentável da agricultura, criação de emprego e crescimento inclusivo. É preciso apoiar as pessoas vulneráveis para a adaptação às alterações climáticas, proteção social e programas de redução de riscos. Os cidadãos e os consumidores podem exigir de seus governos e das empresas que compram responsabilidade pelas ações que tomam ou não estão tomando."

sábado, 4 de junho de 2011

“Marcha das Vadias”

Protesto que discute a violência contra a mulher, ganha edição brasileira.

Começou com uma palestra em uma universidade em Toronto, Canadá, em janeiro deste ano. Durante um seminário sobre segurança no campus, um policial disse às alunas "que elas evitariam estupros se não se vestissem como vadias (“sluts”) ". Indignadas com o que consideraram uma expressão oficial da responsabilização da vítima, elas pediram uma retratação. Enquanto o episódio era investigado, ativistas organizaram a primeira Slut Walk, em português, Marcha das Vadias. Cerca de mil mulheres, muitas delas vítimas de estupro, abuso e assédio sexual, se vestiram com roupas que desafiam o código do policial canadense e saíram em passeata para dizer que não, as vítimas de estupro nunca “estão pedindo”.

Povoados de ativistas de minissaias, lingerie, cinta-liga e decotes, o evento acabou gerando uma onda de Marchas das Vadias pelo mundo. Desde a primeira, já foram 15 eventos, e ainda há mais dezenas marcados até outubro.

No Brasil, a manifestação acontece neste sábado (04), às 14h, na avenida Paulista, em São Paulo. A organização espera reunir 2.500 pessoas. No próximo dia 18, o evento acontece em Belo Horizonte.

“Uma massa dessas na rua expõe esses pontos para a sociedade: se os homens podem andar de qualquer jeito, por que as mulheres não podem? Nem por isso os homens são agredidos, xingados, estuprados”
, diz Silvia Koller professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Com que roupa?

“Estamos pedindo respeito, independentemente da indumentária. A roupa não faz diferença no manifesto”, diz Madô Lopez, 28 anos, redatora que está organizando a marcha no Brasil, junto com a escritora Solange Del Ré, 30 anos. “É um problema corriqueiro que toda mulher enfrenta. Se você vai comprar um cigarro no bar, pode ser intimidada, como se estivesse provocando essa reação só por ser mulher”, afirma Solange. “A gente sabe que tem mulheres sendo espancadas no Brasil. Mulheres que são estupradas por causa da roupa que estão usando”.

O controle sobre o que as mulheres vestem se reflete mesmo em um evento que questiona exatamente isso. Muitas ativistas vêem com reservas esse tipo de manifestação, em que o corpo das participantes pode ser encarado como uma atração. “É preciso cuidar para não cair num outro extremo: de uma coisa caricata ou uma brincadeira”, afirma Silvia Koller.

Por isso, é possível que a versão brasileira acabe sendo menos explícita. “Não é carnaval nem festa à fantasia. É uma causa séria. Não tem regra do que vestir. Quem tiver hábito de usar vestidos curtos e decotes pode ir assim. Vamos vestidas com as roupas que usamos normalmente para sair”, afirma Madô.

Silêncio e violência

Para Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da Universidade Estadual de Campinas, o protesto é uma forma de quebrar o silêncio. “A Marcha das Vadias está ligada ao combate da violência sexual, seja estupro ou a episódios de violência como uma faculdade gritando em coro para a estudante Geisy Arruda que ela é uma vadia. É essa a questão que está ali colocada”, afirma a socióloga, que pretende participar da marcha. “Quando uma mulher se comporta de uma determinada maneira ou tem uma determinada aparência, regula-se o comportamento dela por meio da violência.”

As ofensas e intimidações são sintomas da reivindicação principal da marcha, que é que a culpa pela violência sexual não seja revertida para a vítima. “Antes até do assédio, falta discutir mais profundamente a questão do estupro. Se o assédio é banalizado, o estupro é muito mais grave e acontece no Brasil, com pouca repercussão”, afirma Lia Zanotta, professora titular de Antropologia da Universidade de Brasília, especialista em estudos sobre violência contra a mulher. “Mesmo manuais jurídicos apresentam que você deve desconfiar quando uma mulher denuncia o estupro.” De acordo com a professora, na cultura brasileira é esperado que, mesmo quando a mulher quer sexo, ela diga não. “Logo, quando ela não quer e diz não, é interpretado como um sim. Se ela para de gritar e tentar enfrentar o agressor fisicamente, é interpretado como uma aceitação.”

Para a pesquisadora, eventos como a marcha são bem-vindos. “Já temos campanhas contra violência sexual, mas falta a implementação de uma política preventiva efetiva.”

Palavras

Regina Facchini afirma que a própria palavra “vadia” é usada para agredir. “É a estratégia de usar uma palavra com estigma”, afirma. “A palavra não vai perder a carga pejorativa numa única marcha, mas acredito que o efeito é cumulativo, como aconteceu com o movimento LGBT. As paradas gays mostraram para a imprensa e para a sociedade a existência da homofobia.”

Esse tipo de transformação é lento. Autor de “A Linguagem Proibida” (Ed. T.A. Queiroz), Dino Preti, professor titular de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor emérito da Universidade de São Paulo, afirma que esse estigma tende a se perder, porque acompanha mudanças sociais. “Não é da noite para o dia, mas quando a sociedade passa a aceitar melhor determinados comportamentos, as palavras pejorativas ligadas a ele vão perdendo a força também”, diz. “E sexo é um tema importantíssimo, atinge a pessoa. A sociedade é muito machista.”